sexta-feira, 27 de janeiro de 2006

AS ADJACÊNCIAS VITAIS — CAPÍTULO n+2, donde n+y=x

AS ADJACÊNCIAS VITAIS
blog-novela em x capítulos


CAPÍTULO n+2, donde n+y=x

No capítulo anterior, Saragurinha e Jaimunda acabam de cruzar com o caminhão onde trabalham Sodomito e Calupto; Calupto pára o pesado em frente a sua casa enquanto Sodomito vê, em seus devaneios, a imagem de sua amada.

Saragurinha passa saltitante pelos portões do colégio juntamente com Jaimunda que, apesar de trazer alegria estampada no semblante e pulsante no coração por ver seu amado Calupto, traz n'alma a preocupação quanto ao seu estado de saúde genética.

Os momentos em que vira Sodomito ficaram projetados mentalmente em Saragurinha: ficara tão excitada ao vê-lo de surpresa minutos antes que mal podia conter-se. Sua mente, porém, parecia fazer-lhe truques quando tentava refazer a cena em que sorrira para seu amado pois não era bem sucedida ao tentar refazer mentalmente as feições do belo rosto de Sodomito. Mas contentava-se com as vezes em que conseguia.

Passando pelo grande corredor central do prédio onde estudavam, Saragurinha avista Rimenaldo, irmão querido de Sodomito. Saragurinha se detém por um momento e observa-o passar perto dela. Ela lhe sorri e ele a cumprimenta com um gesto. Rimenaldo é tido quase como um garoto prodígio pela sua inteligência e pela brilhante capacidade de resolver problemas: era destaque em Filosofia, Física e Genética I. Rimenaldo ajudava a todos com os inteliquadros e outras questões técnicas menores. Era, por tudo isso, muito bem quisto entre professores, colegas e familiares: era aluno exemplar, um amigo para todas as horas e, claro, o orgulho de Cantinflas e Dominicéia.

Toca a sirene e todos entram para as salas de aula. Rimenaldo cumprimenta seu professor e senta-se. Conecta seu inteliquadro à rede e deixa-o de prontidão para escrever, anotar e receber informações pertinentes à aula. Assim que todos se sentam, o professor cumprimenta a turma:
— Bom dia, classe!
A classe o cumprimenta de volta animadamente:
— Bom dia, professor Tibúrcio!
Ele se volta para seu inteliquadro e acessa os arquivos necessários para a aula. Os arquivos estão em ordem crescente de grau de conhecimento e são enviados para os inteliquadros dos alunos à medida em que respondem questões relâmpago sobre o arquivo anterior, de modo a personalizar o processo de conhecimento. O arquivo seguinte é escolhido por um programa desenvolvido pelo próprio professor de modo que os alunos criam sua própria ordem de aprendizagem, enfatizando os assuntos que mais lhe agradam: o programa é sensível a cada resposta e a ordem e o conteúdo da aula em arquivos é moldado pelo grau de interesse de cada aluno pelos assuntos apresentados.
— Muito bem, classe; continuando o assunto anterior, alguém pode me explicar o que é o Animaliferador?
Os alunos hesitantes balbuciam entre si a resposta. Rimenaldo, no entanto, diz firmemente:
— É um ente biocibernético auto-regulado que gera todos os códigos genéticos das pessoas.
— Sim, muito bem!, exclama o professor. E continua:
— E por que dizemos que ele é biocibernético e auto-regulado?
Um silencio toma conta da classe por alguns segundos, e Rimenaldo, vendo que ninguém é capaz de responder, responde tranqüilamente a questão:
— Biocibernético porque é, ao mesmo tempo, um ser vivo e um computador; auto-regulado porque tem sua própria fonte independente de energia e sabe direcioná-la com o objetivo de manter sua integridade física e informacional.
— Muito bem, Rimenaldo!!

Enquanto isso, em outra classe mais adiantada, Saragurinha está em devaneios mas, por coincidência, o assunto também é Nife:
— Então, agora sabemos que Nife foi concebido a partir dos sobreviventes à Catástrofe. Todos sabem que estes sobreviventes habitavam o que hoje se chama Zona Neutra: nela as conseqüências da Catástrofe foram menos insidiosas e as pessoas conseguiram lá sobreviver aos eventos. Como a Catástrofe atingiu todos os habitantes do globo -- olhem para cá! -- desde aqui até aqui fazendo com que as condições de sobrevivência no planeta mudassem substancial e abruptamente, os cientistas tiveram que reprogramar geneticamente as plantas para que sobrevivessem às mudanças e, assim, puderam continuar se alimentando e, também, alimentar seus descendentes.
Os alunos parecem interessados na explicação e o professor continua:
— Para essa modificação foi primeiro criado Gife, o Vegetaliferador, e , posteriormente, Nife, o Animaliferador. Por meio de Gife todas as plantas tiveram suas estruturas modificadas e puderam ser readaptadas às novas condições. Vendo que os experimentos tiveram bons resultados, Nife foi concebido e criado, e, através dele, os animais tiveram suas estruturas geneticamente reprogramadas de modo a readaptá-los e servir para nossa alimentação.
Um colega de Saragurinha se mostra mais adiantado e fica curioso com a informação que se lhe apresentou em seu inteliquadro:
— Professor, o que foi a Fusão?
O professor responde satisfeito:
— Nife, na sua concepção primária, já pôde mostrar muito da sua inteligência e superou em muito a soma das capacidades mentais dos cientistas que o criaram. Nife, então, requisitou aos cientistas que seu organismo se fundisse ao de Gife para que, como um só, pudessem continuar a sua tarefa. Esse fato foi comprovado quando Nife, depois da Fusão, conseguiu fazer toda a reprogramação genética da raça humana e, a partir dela, pudemos habitar novamente as outras partes do planeta além da restrita Zona Neutra.

Saragurinha é despertada de seu devaneio com o bipe emitido por seu inteliquadro assim que foi atualizado com o próximo assunto. Assustou-se a princípio pois percebeu aí que perdera toda a explicação. No entanto tinha a segurança de ter cientistas na família: as irmãs de sua mãe, as três tias solteironas Isnara, Zuleima e Edelacira. Sabia que as três estariam passando pela cidade durante a viagem que faziam todos os anos rumo ao Sul onde a Festivália acontece todos os anos -- nos outros lugares a Festivália só acontecia bienalmente. Eram muito festeiras, gostavam muito de farrear, contar piadas sujas, dançar a linvira e beber muita cerveja de wilson. A última vez em que as vira foi durante uma Festivália... dançaram tanta linvira, pareciam três jacksons da floresta!

Saragurinha e Jaimunda saem juntas da sala quando toca a sirene anunciando o intervalo. Jaimunda desabafa:
— Sará, não agüento esperar. Depois desta aula sobre Nife e programação genética, sinto que minha angústia só acaba quando eu for até a conselheira genética da escola...
— Jai, se fosse comigo eu já teria ido: eu sei que não há de ser nada, não sei por que você não pensa o mesmo!
Jaimunda concorda e se sente um pouco mais aliviada:
— É, você tem razão, não adianta nada eu ficar me preocupando. Tenho que ir ainda hoje vê-la e acabar logo com essa dúvida.
Saragurinha faz um gesto positivo com a cabeça e fica contente por ter melhorado o estado de ânimo da amiga.

Enquanto isso, na casa de Saragurinha, Cantinflas escuta uma conversa animada de Dominicéia falando no telecom:
— Ai, que bom! E a que horas vocês chegam?
Cantinflas pára sua leitura e vai até ela, que parece estar muito feliz:
— Claro que não incomodam! Nós sempre esperamos vocês nesta época do ano!
Cantinflas percebeu que se tratava da visita anual de suas cunhadas solteironas. Pousa o largo inteliquadro doméstico sobre a mesa e se dirige à cozinha.
Dominicéia chega em seguida e exclama:
— As meninas estão chegando!
Cantinflas dá um sorriso irônico e comenta:
— Domi, se elas são meninas você é o que?, um feto?
Ela, no entanto, não se deixa irritar pela ironia do marido e pede-lhe para que prepare o prato preferido delas:
— Ah, querido, faz aquele risoto de alice com ervas antigas que só você sabe preparar...
Cantinflas pega rapidamente os utensílios que precisará para o preparo do prato enquanto responde-lhe ainda mais ironicamente:
— Você acha que uma xícara assim de cianureto dá?
Tamanha zombaria de sua parte é, no entanto, inteiramente chistosa já que tem por suas cunhadas um profundo respeito. Sabendo disso, Dominicéia emite apenas um muxoxo entre tantos sorrisos e põe-se a arrumar a casa. Da sala, comenta com o marido:
— Ai, a Saragurinha vai adorar saber que suas tias estarão aqui por esses dias!
Cantinflas aproveita e acrescenta;
— É sim, e também é bom pra elas ensinarem um pouco de Genética pra ela porque as notas dela têm vindo abaixo da média! É você mesma quem diz: "na idade de Saragurinha, as três já faziam seus experimentos científicos na Escola de Genética!"

Nesse momento, Saragurinha chega da escola e vai até a cozinha. Cumprimenta o pai com um beijo estalado:
— Oi pai! Cadê a mamãe?
Nesse momento escuta sua mãe cantarolando enquanto arruma o quarto de hóspedes. Seu pai só a olha e retruca:
— Onde você acha?
Saragurinha abre imediatamente um amplo sorriso, já adivinhando o motivo da cantoria da mãe, e sai em disparada ao encontro dela:
— Mamãe, mamãe!! A que horas elas chegam?
Dá em sua mãe um abraço apertado que quase a imobiliza em seus afazeres, e esta resmunga sorrindo:
— Sará! Chega! Me deixa trabalhar! O quarto tem que estar arrumado porque elas já estão quase chegando! Elas estão indo para o Sul, para a Festivália.
— Eu imaginei, mamãe! Eu sei que elas não perdem uma Festivália! Eu me lembro de quando elas se fantasiaram de neutrícolas! Adoro quando elas mostram fotos de Festiválias passadas, quando elas eram novas... elas eram lindas! Tem uma em que aparecem fantasiadas de estátuas antigas! Elas são muito divertidas!

Saragurinha vai até seu quarto levando o telecom consigo, larga seus inteliquadros sobre a cama e tecla com avidez o aparelho enquanto fecha a porta.
— Alô, é da McKallor? Gostaria de falar com Sodomito, por favor.
Saragurinha espera a telefonista localizar seu amado na seção de Preparação Criogênica enquanto se debruça abruptamente na cama, pondo-se a balançar impacientemente suas pernas no ar. Sodomito chega ao terminal onde está a telefonista e percebe que seu chefe está ao lado.
Uma voz máscula e firme atende o telecom do outro lado:
— Pronto, é Sodomito falando.
— Oiii! Tudo bom? Liguei por dois motivos.
Sodomito finge se tratar de um assunto profissional pois seu chefe está perto:
— Ahn, sim senhor Veneraldo, pode falar.
Saragurinha percebe a falta de privacidade em que se encontra Sodomito ao telecom:
— Eu sei, teu chefe deve estar aí... O primeiro motivo é que estava com saudades e o segunto, que devo me atrasar hoje porque minhas tias se hospedarão lá em casa. Talvez não dê pra nos vermos quando você sair do trabalho.
Sodomito fica tenso com a situação e responde-lhe:
— Ahm, tudo bem, é..., verificarei a disponibilidade dos componentes o quanto antes. Espero novo telefonema do senhor para informar-lhe quando poderei fazer a entrega.
Saragurinha conclui o telefonema adiando o encontro para mais tarde:
— Isso, Sodô, assim que eu puder sair te ligo e marcamos onde nos encontrar, está bem? Um beijo!
Sodomito quase não conseguindo mais fingir:
— Outro para o senhor, passar bem.
O chefe estranha a frase final de Sodomito e este, nervoso, tenta explicar-lhe:
— Ele é um amigo de infância do meu pai...
Sodomito sente seu coração palpitar como o de um zacarias das estepes... Nunca sentira por ninguém o que sente por Saragurinha; chega a colocar até a confiança que seu chefe tem em seu serviço só para ouvir a voz maviosa de sua amada.

Jaimunda acaba de sair do aconselhamento genético com uma lista de exames que deverá fazer. Ela sabe o destino de todos os que têm defeitos genéticos graves. Chegando em casa, liga para Saragurinha:
— Amiga, eu tenho que fazer um monte de exames... Tenho que ir ao ReproGen! Nunca tive de ir lá! A última vez que estive no ReproGen foi quando meus pais me tiveram!
Saragurinha fica penalizada com a situação da amiga e tenta confortá-la mais uma vez:
— Ai amiga, de vez em quando somos aconselhados a ir ao ReproGen... Você não lembra quando a Rúmia teve que ir? Ela também precisou fazer um monte de exames e tal, e no fim das contas ela não tinha nada!
As lágrimas escorrem pela face de Jaimunda, molhando a área do telecom que fica perto da boca:
— Sará, eu sinto minhas costas inchadas também, bem aqui atrás dos ombros, nas escápulas... o que será isso?
Saragurinha fica consternada e não sabe mais o que aconselhar:
— Amiga, eu vou hoje ver o Sodomito mas antes passo aí pra te ver, está bem assim? Fica tranqüila que tudo vai dar certo.
Enquanto isso ouve a campainha tocar:
— São minhas tias! Jai, eu tenho que desligar agora mas me espera que chego aí mais tarde. Um beijo, até mais! E fica tranqüila!
— Um beijo, amiga, obrigada, vou tentar ficar mais calma. Te espero!

Saragurinha olha pela janela de seu quarto e vê suas tias estacionando o carro. Troca rapidamente a blusa do uniforme e vai correndo até a porta da frente. No caminho encontra sua mãe e grita-lhe:
— Mamãe, são elas!
As duas correm em direção à porta da frente e escutam as vozes das três do lado de fora. Cantinflas vem logo atrás em passos não tão ligeiros. Ambas se olham felizes e abrem a porta. Lá estão elas em seus trajes da Região Norte; as cinco se entreolham e as irmãs exclamam escandalosamente:
— Tchã-raaaaaam!

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