terça-feira, 24 de janeiro de 2006

AS ADJACÊNCIAS VITAIS, CAPÍTULO n+1

AS ADJACÊNCIAS VITAIS blog-novela em x capítulos

CAPÍTULO n+1, donde n+y=x

No capítulo anterior, Sodomito se recolhe aos seus aposentos com uma foto de Saragurinha que tirou de seu recado no telecom.

Dominicéia, mãe de Sodomito, volta da cozinha onde encontrou seu filho em devaneios com a foto de Saragurinha em suas mãos. Preocupada, vai até a sala e encontra Litóvão, seu esposo, decifrando as instruções da abelha de controle remoto que Rimenaldo ganhara de seu irmão naquela noite. Rimenaldo é um menino muito inteligente, aprendeu a operar seus inteliquadros sozinho, passando a ensinar a todos os seus colegas na escola. Insistindo muito com seu pai, consegue reaver o controle remoto do inseto artificial, juntamente com o manual de instruções: está muito contente por ganhar algo que causará inveja e admiração junto a seus amigos. Litóvão percebe a perturbação n'alma de sua esposa, aborda-a e abraça-a gentilmente, como fazem os osvaldos nas copas das grandes árvores:
— O que te preocupa, minha querida?
— É o Sodô... Você já percebeu como anda distante, sonhando acordado pelos cantos? Fiquei sabendo que foi repreendido no trabalho por estar desatento. Parece que hoje descobri a causa. Por Nife!! Tenho até medo de te falar...
— Diga logo, mulher!
— Ele está enamorado... antes fosse por qualquer outra garota da sua idade fenotípica, mas o destino tão cruel o colocou diante de ninguém menos que Saragurinha...! Litóvão imediatamente faz uma boca torta, com ares de não ter a mínima idéia do que se trata:
— E o que é que tem isso?
Dominicéia, com a boca trêmula e os olhos umedecidos pela angústia de ser a portadora de tal informação, olha bem nos olhos de Litóvão e diz baixinho:
— Você não sabe quem é a Saragurinha, Lili? Ai, por Nife, ela é filha de Cantinflas e Girolana...
Litóvão fica prostrado por alguns segundos, contudo abre um enorme sorriso depois disso e entre risadas tenta consolar Dominicéia:
— ahHahaHAH! Ah, Domi, você não sabe como são os jovens? Já se esqueceu?... Isso é passageiro. Sodô é muito menino ainda, tem muito pela frente! Encontrará muitas outras garotas até achar aquela com quem se casará...! E terá muitos filhos a partir de então! A programação familiar que a genética proporciona hoje será ainda melhor no futuro!
Dominicéia, no entanto, não se põe menos preocupada e comenta:
— É exatamente disso que eu estou falando, Lili: genética... Você SABE o que Cantinflas e Girolana estavam fazendo no Reprogen vinte anos atrás, época em que tínhamos programado Sodomito.
Litóvão, com um ar bonachão que lhe era peculiar, insiste tranqüilamente:
— Não é nada pra se preocupar, querida! Sodô é muito novo, é um rapaz muito bonito, muito sacudido, tem um futuro na empresa onde trabalha, o que não faltará são garotas atrás dele muitas ainda mais interessantes que essa tal Saragurinha!
Dominicéia se mostra menos aterrorizada mas mantém ainda, no firme semblante de uma formosa mulher madura, a preocupação de que algo de sério possa acontecer entre seu amado filho e aquela com quem seus genes não poderiam se encontrar.

No dia seguinte, Saragurinha acorda feliz e se encontra com a família na cozinha. Girolana está em pé fazendo o que Cantinflas mais gosta de comer pela manhã: omelete de ovos de olga com tiras defumadas de carne de anderson. Corre até sua mãe dando-lhe um beijo estalado, fazendo o mesmo depois com seu pai. Sua mãe lhe sorri e seu pai resmunga um pouco, limpando a bochecha onde Saragurinha dera um beijo molhado.
— Bom dia!
Sua mãe olha para trás e pergunta-lhe o que gostaria de comer:
— Minha filha, você quer omelete também ou preparo outra coisa pra você?
Saragurinha está apressada para ir ao colégio e não parece estar com fome:
— Não quero nada, mamãe! Vou tomar um copo de leite só!
— Então toma leite de milena porque alimenta mais, e deixa o leite de sérgio pra eu cozinhar...!
Saragurinha não parece escutar, põe leite no copo até a boca e o sorve rapidamente. Limpa a boca no avental de Girolana e se vai.
— Tchau mãe, tchau pai! Até mais!
Ao ver Saragurinha sair pelo corredor, grita:
— Que isso, minha filha!!...
Seu pai só olha por cima dos ombros e brada:
— Estuda direitinho, hein? Juízo! Volta DIRETO pra casa!

Do lado de fora da escola, a sorridente Saragurinha encontra-se com Jaimunda: ela está absorta ao perceber uma menina entrando na escola com trajes muito pouco convencionais. O sorriso de Saragurinha se desmancha ao seguir o olhar de Jaimunda e passando a focalizar a triste menina. Saragurinha percebe que Jaimunda está preocupada com alguma coisa:
— Que foi, Jai? É a garota? Tadinha... Por que ela está usando roupa isolante?
Jaimunda baixa os olhos e diz o que sabe sobre o caso:
— Ah, Sará... sei que ela apareceu com um problema genético... Me parece que começou a crescer um terceiro pulmão nela...
Saragurinha, sempre irônica, comenta:
— Melhor pra ela!
— Você acha, Sará? Olha lá, ela está calafetada, sem contato direto com o mundo!...
A reação exagerado de Jaimunda em relação ao assunto desperta-lhe a curiosidade:
— O que foi, Jai? Por que você tá preocupada?
Jaimunda aponta para os cotovelos e os mostra a Saragurinha:
— Notei ontem que meus cotovelos estão inchados... Passa só a mão. Tô com medo de ser algum problema genético... Você sabe que todos nós estamos sujeitos a isso... Você se lembra daquele menininho que teve o fenótipo adiantado de 3 para 70 anos de uma hora pra outra?
Saragurinha passa ligeiramente as mãos sobre os cotovelos da amiga e põe-se a animá-la:
— Que isso, Jai!! O Animaliferador já estava numa versão adiantada quando fomos programadas, estamos livres de um monte de problemas!
— É, mas olha a garotinha: o fenótipo dela é mais novo que o nosso e surgiu esse problema nela... Imagino o que pode nos afetar e nem sabemos... Não quero virar uma aberração genética!!
Procurando colocar um fim naquele assunto mórbido, Saragurinha a admoesta conclusiva porém animadoramente:
— Então procura o Aconselhamento Genético da escola e pára de ficar pensando besteira!
Retomam o passo em direção à escola. Ao atravessarem a rua em direção ao portão, as duas amigas têm uma bela surpresa: Sodomito e Calupto no caminhão da empresa lhes acenam de dentro da cabine. As duas ficam tão estupefatas pela surpresa que são advertidas pelo guarda de trânsito para se moverem dali. Acenam em resposta aos gracejos dos dois mancebos e correm ao outro lado da rua onde está o portão da escola. Entram saracoteando enquanto o guarda as observa.

Dentro do caminhão de entrega, esperando a luz verde do sinal, Calupto puxa papo com Sodomito acerca de Saragurinha:
— E aí? Tá apaixonado?
— Olha, rapaz, acho que nunca senti por outra o que sinto por Sará... Não consigo parar de pensar nela nem um minuto!
— É... quem diria? Sodomito apaixonado!! Você que nunca se importou com isso!
— Não sei o que acontece, Calu. Desde a primeira vez que vi a Sará fiquei vidrado, isso nunca me aconteceu antes!
O sinal abre e Calupto arranca com o pesado. A conversa continua:
— E você já conhece os pais dela?
Sodomito relembra o tratamento rude dispensado a ele durante a última ligação para Saragurinha, e responde:
— Ah cara... o pai dela é durão... tô criando coragem ainda.
— É normal, deve ser ciúme de pai: a Saragurinha é linda, ele deve ser o tipo de pai que quer o melhor para a filha, dá pra entender isso só de olhar como ela é sarada...!
— Ô rapaz, você já tem a tua, olha a brincadeira errada...
Calupto sorri fazendo um sinal com a cabeça indicando que se tratava de uma brincadeira somente. Ao dobrar uma rua, Calupto pára o caminhão numa vaga, abre a porta e diz a Sodomito:
— Vou dar um pulinho aqui na loja ao lado, deve ter chegado uma encomenda pra mim. Enquanto Calupto está fora, Sodomito relembra a imagem de Saragurinha acenando para ele enquanto atravessava a rua, com um amplo sorriso em seu lindo rosto e um brilho intenso em seus olhos. Calupto abre a porta e adentra a cabine e a fecha com um arranque do veículo.
— Calma, cara, que isso! — diz Sodomito assustado. Calupto está excitado com o pacote que trouxe:
— Tenho que passar em casa rapidinho pra deixar isso aqui!
Sodomito lhe pergunta sobre o conteúdo do pacote. Calupto lhe responde ainda excitado pela aquisição mas com ar receoso quanto à aprovação do amigo:
— São os restos de unha que encomendei. Eu faço coleção de restos de unhas cortadas. Essas daqui são as mais raras e antigas que consegui comprar: são cacos de unhas de dedos mínimos duma tribo tavisni! Eles só cortam essas unhas a cada cinco anos! Vale um dinheirão no mercado de fontes genéticas!
Sodomito faz um ar de reprovação mas não deixa Calupto perceber o quanto ficou enojado com o conteúdo do embrulho.

Enquanto se dirigem à casa de Calupto, Sodomito fica repassando cada fração de segundo da visão de Saragurinha lhe acenando, como se já tivesse vivido aquela situação. Algumas vezes ele tenta se relembrar de todos os detalhes mas lhe foge o conteúdo do rosto de Saragurinha em sua mente, e tudo o que ele vê é o corpo perfeito de uma garota sem rosto que simplesmente passa e lhe sorri...

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